Era apenas mais uma criança pobre com vida difícil em um país que passava por tempos difíceis. Filho de um funcionário de uma alfândega, este garoto tinha o sonho de ser artista.
Ele fazia esboços, pintava, projetava museus, pontes, teatros e até mesmo cidades. Por um tempo teve até algumas aulas de piano, durante sua sofrida adolescência. Costumava frequentar concertos, teatros, clubes de música e literatura.
Aos 15 anos, passava a maior parte do tempo desenhando, pintando e lendo. Como muitos de sua idade, era inteligente, mas com tendências à preguiça e a alterações de humor. Cuidava de sua mãe mas não tinha boa relação com o pai, que era mais disciplinador e rígido.
Mas chegou à sua vida uma guerra. Alistou-se voluntariamente e serviu como mensageiro, função que envolvia exposição a fogo inimigo, no lugar da proteção de uma trincheira. Apesar de ter servido com competência e até bravura, jamais foi promovido, não devido à falta de competência (foi condecorado duas vezes por coragem em ação), mas devido à sua posição social. Este preconceito, aliado aos ferimentos, acabou por alimentar uma revolta contida quando seu país acabou se rendendo aos seus oponentes.
Quando voltou para casa, um caldeirão de desemprego, fome e ódio acabou fazendo com que tudo o que era distorcido dentro da mente e dos sentimentos daquele rapaz fosse potencializado.
Morria o artista e nascia… Adolf Hitler.
No post anterior, pontuei sobre o conceito de mainstream, que pode ser traduzido como corrente principal. Assim como cursos d’água têm uma corrente principal onde a água corre muito mais rápido que nas margens, nossa vida também tem a sua corrente principal. A nossa rotina nos leva a seguir esta corrente, fazendo com que tenhamos a tendência de nos vestir mais frequentemente de determinado modo, comer quase sempre o mesmo tipo de comida, pensar e sentir dentro de um padrão que tende a permanecer intacto, dentro da correnteza do dia a dia.
Tudo o que fica nas margens dos cursos d’água ou de nossa vida pode ser classificado como marginal. Este termo, marginal, não é bom ou ruim em sua essência. Significa apenas algo que não está no centro. É algo sobre o que, normalmente, não prestamos atenção.
Aí é que mora o perigo, por duas razões:
- Deixamos de enxergar coisas boas que são marginais à nossa vida, perdendo oportunidades de aprendizado, de relacionamento, de negócios, etc. Escrevi sobre este lado da questão no post anterior.
- Deixamos de enxergar as ameaças que são marginais à nossa vida, deixando que cresçam livremente até que se tornem uma ameaça. É sobre eles que agora escrevo.
Assim como Hitler, várias outras ameaças à sociedade nasceram de pequenos agrupamentos que, silenciosa e pacientemente cresceram nos subterrâneos, nos becos e nas trincheiras da História. Assim como o Nazismo, todo o tipo de aberração, de fundamentalismo, de preconceitos e vícios institucionalizados foram um dia como aquele rapaz “inofensivo”, que só queria ser um artista. Pequenos cacos de vida que foram sendo remendados um ao outro, formando uma tosca escultura que foi sendo ignorada até que, como na história de Frankenstein, uma massa disforme é exposta a um ambiente que favorece o nascimento de um monstro. Aí já é tarde demais. A aberração ganha vida, ameaça a tudo e a todos e tem uma fome que jamais será saciada. Agora o animal inofensivo que poderia ter sido vacinado contraiu raiva e a única solução passa a ser a captura e a execução.
Pesado?
Vamos levar isso para o lado pessoal.
E se estas pequenas ameaças estivessem às margens da corrente principal de nossa vida:
- Vícios que parecem inofensivos no início, como o tal “beber socialmente”, passam a se juntar em um hábito, uma compulsão que se torna um alcoolismo que, se não aceito e tratado, transforma um simples cidadão em um homicida alcoolizado ao volante, que ceifa a vida de inocentes pedestres que estavam sentados em um ponto de ônibus de madrugada, indo para o serviço em um dia normal, mas que agora nunca mais voltarão para casa.
- Relacionamentos sem limites bem delimitados que, se não curados no tempo devido, fazem com que um pequeno empurrão em uma discussão se transforme em um tapa na cara na próxima briga, num espancamento na seguinte até que, um dia, a mão nua seja substituída por uma faca, um revólver ou uma garrafa quebrada.
- Uma simples queimação no estômago depois de exagerar na comida que, sempre tratada com um efervescente, acaba evoluindo para uma pequena ferida sendo carcomida dia a dia pelo suco gástrico, somada a uma determinada bactéria, acaba sendo diagnosticada como câncer, quando já pode ser tarde demais.
Pesado?
Não, não é pesado quando prestamos atenção no tempo certo.
Ameaças sempre estarão presentes às margens de nossa vida:
- O corpo sendo tratado displicentemente, uma fritura aqui e outra ali, até que toxinas vão se acumulando nas artérias fazendo com que, depois de anos, um infarto aconteça.
- Piadinhas recorrentes que se tornam brincadeiras de mau gosto, depois em preconceitos, um dia mostrando-se como ódio racial, sexual ou religioso.
- Sentimentos que se transformam em ressentimentos, que se transformam em mágoas, depois em ódio para, ao final, explodirem em fúria.
Todos os dias, na viagem que fazemos pelo rio de nossa vida, veremos às margens coisas boas, como matas ciliares, praias deslumbrantes e portos seguros. Mas nesta mesma viagem também poderemos ver coisas ruins, como esgotos, rochedos ameaçadores e bancos de areia.
Raras são as vezes em que ameaças surgem de uma vez, grandes, letais, direto na corrente principal, difíceis de serem derrotadas. Na maior parte das vezes, ameaças vivem, sem serem incomodadas: pequenos marginais que fazem barulho de vez em quando, mas que isoladamente não representam perigo. Mas estes marginais se juntam, crescem, vão ganhando corpo até que, um dia, com toda sua ferocidade despertada, saltam da barranca do rio para dentro de nosso barco, preparados para destruir nossa vida.
Esgotos podem ser tratados, faróis podem ser colocados sobre rochedos, boias sinalizadoras podem ser posicionadas sobre bancos de areia, mas isso deve ser feito enquanto eles ainda não são uma ameaça. Já diz um ditado: a hora de consertar o telhado é quando não está chovendo.
Não navegue displicentemente pelo rio de sua vida. Aproveite a paisagem que as margens oferecem, mas sempre preste atenção às pequenas ameaças que rondam seus pensamentos, sentimentos, relacionamentos e demais aspectos de sua vida. Elas podem se acumular e virar um monstro.
Você nunca sabe o que pode levar um jovem artista marginal a se transformar em um ditador implacável.
Reflita, comente e compartilhe esta ideia.
Deus te abençoe!
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